domingo, março 31, 2019


      O sabor da escrita - 2003

Quando há uns anos comprei um livro de crónicas de um famoso cronista espanhol que assinava uma coluna semanal numa revista de Madrid, entretanto desaparecida, julguei que tinha feito mal e era mais um daqueles livros que compramos e acabamos por não ler.

Enganei-me, devorei-o e ainda hoje pego nele para reler algumas das crónicas mais interessantemente intemporais. Desde então, são incontáveis as crónicas que têm feito as minhas deliciosas noites de leitura, uma mão na cabeça, a outra a agarrar o livro, o cheiro forte dos cigarros que me vão consumindo, foi a formula que achei óptima para rejeitar um aparelho que, de desilusão em desilusão, tenho, felizmente, abandonado, a TV.

De tempos a tempos e desde então não mais deixei de comprar compilações de crónicas. Alguns destes livros até os leio ao longo de muitos meses, talvez até anos. O interessante neste tipo de trabalhos é a despreocupação de que o livro tenha partes precisas de leitura, obrigatoriedade que não nos permite deitar o dedo ao livro e abri-lo onde muito bem nos apetecer. Não, (!) com estes podemos ler do fim para o princípio, do meio para onde quisermos, ou de onde nos apetecer. Ler todas as crónicas, ler só algumas, ler partes abandonando as que não nos interessam sem que com isso o livro deixe de ser interessante. No fundo, são livros que nunca acabamos de ler.

Um dos cronistas que ocupa os meus momentos de leitura nestes últimos dias é Miguel Sousa Tavares. Já tenho dito cobras e lagartos deste Escritor, Cronista, Comentador e mais não sei o quê, além de Advogado, até já lhe escrevi não tendo obtido qualquer resposta, mas tenho, de facto, que me render às suas qualidades de escrita da crónica no estilo mais puro e simples que temos nos nossos dias. Os dois excelentes trabalhos de compilação que adquiri, não num lugar qualquer, mas numa livraria, impeliram-me à escrita deste comentário. Se eu tivesse tido a capacidade de os escrever, nunca permitiria que os mesmos fossem vendidos em hipermercados. Não sei bem porque digo isto, mas digo-o sentindo uma profunda nostalgia do tempo em que passava horas a fio a ler a lombadas de livros numa livraria que havia na minha rua em Lisboa. Tempos que já não voltam, mas que não esquecem.

Há muitos anos que leio as crónicas dele, muitas vezes com o fito de contestar, de acirrar a minha repulsa pelas suas ideias e opiniões sobre o “meu” Algarve“, mas de cada vez que leio a crónica ”E Ela Dança”, que retirei da Internet e tenho religiosamente impressa, reconheço que é uma sublime descrição, onde o ensaio se mistura com a poesia e a música de fundo é perceptível, só possível sair da pena de alguém dotado a quem me apetece até, desculpar os impropérios que se tem atrevido a dizer da minha cidade.

Os seus trabalhos na imprensa, principalmente aqueles de índole política, revelam-nos um homem arrogante e acutilante, mas é também um estilo que usa com bom senso, porque se revela informado na dose certa e na altura exacta, evitando opinar sem um profundo conhecimento da matéria em análise.

Consultei na Internet uma imensidão de opiniões sobre este escritor, utilizei todas as formas possíveis de consulta e até me poderão acusar de plágio de algumas das opiniões que li, mas é inquestionável que o sentimento constante é a rendição à qualidade, à simplicidade que nos oferecem os seus escritos, à forma simples com que personaliza todos os seus trabalhos.

Miguel Sousa Tavares é sem dúvida um dos melhores cronistas que podemos ler nos jornais dos nossos dias. “É preciso salientar contudo, que a opinião de pessoas como o Miguel, é extremamente fácil de conduzir, pelo menos é-o a partir da altura em que se tornaram, ou em que os tornaram vedetas. Basta tão só, digo eu, gerir a imagem e dizer mais de cinquenta por cento daquilo que as pessoas gostariam de ouvir, o resto do todo opinado, pode ser até disparatado e sem nexo, porque o essencial do truque já foi aplicado. Se juntarmos a isto, o facto de tais opiniões serem remuneradas, temos, senhores e senhores, os ingredientes bastantes de incentivo às tiradas mais difíceis”. Esta foi uma de entre as opiniões que li, mas é talvez aquela que melhor define, não o homem, porque esse está para além de qualquer comentário público que eu possa produzir, mas talvez a vedeta em que se tornou e que a meu ver não lhe melhorou em nada a escrita, restando-nos a consolação de também não ter piorado, isto é, o vedetismo não influenciou em nada a sua forma de estar com uma caneta na mão. Então que goze os frutos e malefícios de ser vedeta e continue dando-nos o prazer de ler. Ler, só ler, com aquele som de fundo que mais parece o rabiscar apressado de quem tem que dizer, antes que esqueça.

Ele consegue fazer o que poucos sabem, ser claro e incisivo, ousa frequentemente utilizar uma linguagem controladamente ofensiva, como o fez com Madail na TVI, mas também como poucos não se refugia no facto de ser uma estrela rejeitando a confrontação de ideias olhos nos olhos. No fundo, é o homem que comenta com realismo, com o cuidado de estar actualizado, fundamentando o seu comentário na sua vasta cultura geral e na sua fantástica percepção da situação e do momento.
Com convicção, ele é capaz de defender uma ideia, mesmo sabendo que pode ser aplaudido hoje e amanhã vaiado, isso não o impede de imprimir à escrita a melodia que é de facto o que de bom nos tem oferecido.

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PS: Mas o Livro, e como em tudo na vida há sempre um mas, hoje pode ser adquirido num hipermercado. Lá somos de imediato confrontados com uma imensidão de livros díspares, dispostos de forma indecorosa e atentadora da consciência que a leitura nos provoca. Nunca percebi muito bem porque razões se compram livros num hipermercado. Confesso que já comprei um, o de Cavaco Silva, mas fiquei, de facto, de imediato arrependido, penso até que esse sentimento se manifestou antes mesmo de chegar à caixa de pagamento. É que misturar livros com batatas e couves ainda não cabe nas mudanças de hábitos que tenho tido que operar na minha vida. Nunca mais comprarei nenhum, vou prometendo a mim próprio. A promessa resulta do facto de não o ter conseguido acabar de ler. Não que ele seja desinteressante, é mais porque o estilo não me agrada e o tema ainda menos, mas penso que o pior é a constante lembrança que o paguei ao mesmo tempo que um saco de batatas, couves, latas, cerveja, vinho etc. e tal. Livros compram-se na livraria e isso influencia a forma como leio. Porquê? Não sei!

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